Por Luís Toscano
O Decreto nº 10.635, de 22/02/2021, foi o mais recente capítulo, em termos legislativos, de um movimento que, no Brasil, pode ser traçado até, no mínimo, o ano de 1990. Naquele já distante ano, em 12 de abril, foi sancionada a Lei nº 8.031, criando o Programa Nacional de Desestatização, posteriormente alterada pela Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997. Pode-se afirmar, portanto, que já se vão pelo menos 30 anos de debates sobre a pretensão de desonerar a Administração Pública, ao mesmo tempo em que se pretende reestruturar investimentos nos setores afetados e trazer maior dinamismo à economia brasileira.
Ao analisar o artigo 1º da já citada Lei nº 9.491/97, o cenário sem dúvida nenhuma é animador: o referido Programa Nacional de Desestatização prevê, dentre outros, que a partir da saída do Estado de setores em que estaria atuando de maneira precária, o mesmo poderia se concentrar em atuar onde ele é essencial, ao mesmo tempo em que permitiria maior aporte de investimentos, modernização tecnológica e democratização de capital por meio da participação de mais sócios e acionistas das empresas afetadas. Em que pese a complexidade do assunto, quanto mais em se considerando a variedade de áreas contempladas, que vão desde siderúrgicas e mineradoras até centrais elétricas, e em se considerando ainda o ínterim compreendido entre 1990 e os dias atuais1, é possível realizar análise mais específica sobre um setor com importância cada vez maior: o aeroportuário.
Voltando aos dias atuais e ao Decreto nº 10.635, o mesmo veio a qualificar e preparar para serem concedidos à iniciativa privada, dentre outros empreendimentos do setor de transporte rodoviário e portuário, os aeroportos Santos Dumont e de Jacarepaguá, na Capital do Rio de Janeiro; o aeroporto internacional de Macapá, Capital do Amapá e o aeroporto internacional de Belém, Capital do Pará; os aeroportos de Congonhas e Campo de Marte, em São Paulo, Capital; e o aeroporto internacional de Campo Grande, Capital do Estado do Mato Grosso do Sul. Estão no rol, ainda, aeroportos de localidades menores em Minas Gerais, no Pará, em Mato Grosso do Sul e no Amazonas.
A experiência já havia sido bem-sucedida anteriormente, em aeroportos como os de Guarulhos, no Estado de São Paulo, e no de Brasília, no Distrito Federal. Estudo realizado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA2 indicou que o Governo Federal conseguiu arrecadar US$ 14 bilhões, valor que corresponde a cinco vezes o originalmente previsto, o que é forte indicador não só da importância das operações para o aumento das reservas de um país que já atravessa períodos de turbulência econômica há algum tempo, demandando medidas de austeridade e de maior arrecadação, ao mesmo tempo em que demonstra a lucratividade das operações para os interessados. Sem prejuízo, o estudo do ITA apontou ainda o aumento no fluxo de passageiros (de 53,9 milhões em 2000 para 175 milhões em 2013), reconhecendo que o cumprimento de contrapartidas exigidas pela desestatização (e pelo próprio interesse das empresas administradoras em viabilizar cada vez mais suas operações e receberem retorno em seus investimentos) se refletiu em ampliação de capacidade de terminais, pistas de pouso e pátios de aeronaves.
Por outro lado, a mesma pesquisa3 aponta que, em que pese a constatação de aumento geral de demanda decorrente das desestatizações, as mesmas não são compreendidas como sendo “garantia de sucesso”, já que o modelo está sujeito às mudanças políticas que possam “anular” ou “atrapalhar” o equilíbrio financeiro do processo de desestatização (que leva tempo), ou ainda dinâmicas de mercado que não favoreçam uma ampliação de market share das operações dos aeroportos que ficassem nas mãos da iniciativa privada, prejudicando a operacionalidade dos mesmos.
Fato é que leilões anteriores chegaram a arrecadar valores 986% superiores ao lance mínimo4, o que evidencia o potencial que as referidas desestatizações têm para trazer mais reservas financeiras à Administração Pública, ao mesmo tempo em que retira dela o ônus da manutenção dos terminais e aeroportos. Contudo, o outro lado da moeda também já foi constatado, como é o caso do Aeroporto de Viracopos (Campinas-SP): naquele caso, empreiteiras que não tinham como atividade fim a administração de aeroportos (e, inclusive, envolvidas na “Operação Lava-Jato”) embarcaram na “aventura” de assumir a concessão5, mas ao vivenciar os prejuízos da operação – e aqui não se discute se advindos de administração ineficiente frente às peculiaridades da área, ou diversos outros fatores que precisam ser considerados em análise mais ponderada – acabaram por devolver o aeroporto ao Poder Público6. Naturalmente, esta devolução ocasionou prejuízo, obrigando a realização de uma nova licitação7.
Fica demonstrado então que a desestatização de aeroportos brasileiros pode, sem dúvida alguma, ser benéfica para o País. Entretanto, o Brasil não pode se dar o luxo de realizar estes processos sem os devidos cuidados e precauções, sob pena de desperdiçar mais essa chance de utilizar reservas econômicas para fins de fomento à ainda cambaleante economia nacional e em socorro econômico às populações mais carentes. É sempre importante destacar que a situação de pandemia torna o cenário de previsões econômicas ainda mais incerto e desconfortável, o que, por sua vez, demanda ainda maior atenção no sentido de evitar “aventureiros” como se constatou no caso de Viracopos.
1 Para os interessados no assunto, o BNDES tem em seu site um resumo interessante e que pode ser acessado em https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/desestatizacao/processos-encerrados/Historico
2
http://www.ita.br/noticias/oimpactodaprivatizaodeaeroportos
3 ROLIM, Paula e BETTINI, Humberto e OLIVEIRA Alessandro Vinícius Marcos de. “Estimating the Impact of Airport Privatization on Airline Demand: A Regression-Based Event Study” (2016) – disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2650343
4 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/03/15/1-leilao-de-bolsonaro-concessao-de-12-aeroportos-arrecada-r-2377-bi.htm
5 https://todosabordo.blogosfera.uol.com.br/2017/08/31/aeroporto-privatizacao-concessao-guarulhos-confins-galeao-brasilia/
6https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2017/07/28/acionistas-de-aeroporto-de-viracopos-decidem-devolver-concessao.htm
7https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2020/07/17/governo-federal-publica-decreto-e-autoriza-relicitacao-do-aeroporto-de-viracopos.ghtml