STF DECIDE PELA CONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA DE “BEM DE FAMÍLIA” DO FIADOR

Por Luís Toscano

No último dia 10/03/2022 o Supremo Tribunal Federal julgou o mérito de um tema bastante controverso, qual seja, o tema 1.127 de Repercussão Geral, fixando a tese de que “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”. É interessante destacar que foram votos vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski, o que evidencia o fato de que o tema estava longe de ser unanimidade entre os julgadores do Supremo Tribunal.

            Explica-se a polêmica: o bem de família tem por definição, conforme o artigo 1.712 do Código Civil, consistir em “prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família”. Em outras palavras, é possível associar o bem de família diretamente com a previsão Constitucional de que a moradia é um direito social assegurado pelo artigo 6º da Lei Maior.

            Contudo, não se pode ignorar também a necessidade de proteção ao crédito como valor também ligado à Carta Magna, posto que, conforme explicitado pelo artigo 170 da CF/88, a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, e a ameaça que a eventual impossibilidade de receber créditos por parte daqueles a quem o fiador esteja devendo, em virando regra e não exceção, tem o condão de ameaçar de maneira muito perigosa a estabilidade econômica (e social) da nação. Ademais disto, foram invocados ainda nos debates a Dignidade da Pessoa Humana enquanto fundamento da Constituição Federal (na forma de seu artigo 1º) e a atenção especial dispensada à família enquanto instituição que recebe especial proteção do Estado, conforme artigo 226.

            Percebe-se então que o debate em questão coloca direitos constitucionais e bens jurídicos protegidos pela Constituição em cada um dos lados da balança, em defesa de cada um dos argumentos, o que dificulta ainda mais a formação de tese que se prove plenamente compatível com as previsões constitucionais, razão pela qual o julgamento passou longe da unanimidade. É importante apontar que nos idos de 2010 (mais especificamente, em 03/09/2010) o mesmo STF já havia julgado o Tema 295, entendendo pela possibilidade de penhora de bem de família de fiador em contratos residenciais, contudo o tema objeto do presente artigo versa sobre situação que, em que pese guardar bastante semelhança, é essencialmente diferente, posto que agora direcionada ao bem de família oferecido em garantia para a locação de imóvel comercial. Fato é que se percebe que a polêmica não é nova e, mesmo passada mais de uma década desde debate semelhante (mas não igual, frisa-se), permaneceu pertinente.

            No que tange às interpretações relativas aos temas em questão, insta apontar que a Primeira Turma do Supremo, em julgado datado de 12/06/2018 e publicado no DJe de 18/02/2019, entendeu que a penhora de bem de família de fiador em contrato de locação de imóvel comercial não se configurava constitucional dado o fato de que, diferentemente do que ocorria na locação de imóvel residencial, não poderia ser justificada com base no princípio da Isonomia, posto que não se tratava ali de promover o próprio direito à moradia dada a função comercial do imóvel.

            Por outro lado, em outro Julgado da mesma Primeira Turma, publicado no DJe de 06/04/2020, o STF trouxe à baila a Lei nº 8.009/1990, que trata especificamente da proteção ao bem de família. Na ocasião, foi suscitado o artigo 3º, inciso VII da lei acima referida, segundo o qual a alegação de impenhorabilidade do bem não pode ser invocada em processo movido em decorrência de obrigação de fiança em contrato de locação (sem previsão legal expressa sobre restrição dos contratos a locações comerciais ou residenciais). Surgiu então impasse diante dos entendimentos semelhantes a cada um dos resumidos acima, o que, diante da clara insegurança jurídica que causavam, necessitava ser sanado pelo Supremo.

            Assim o é que o Relator do Recurso Extraordinário 1307334 (ensejador dos debates mais recentes), Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, concluiu pela proporcionalidade e razoabilidade da disposição legal citada no parágrafo anterior, afirmando que os outros meios legalmente aceitos como garantia em contrato de locação comercial, a exemplo do seguro-fiança e a caução, são mais custosos para a maioria dos empreendedores, sendo que o fiador dispõe de liberdade sobre seus bens, o que acaba por se associar ao princípio da autonomia privada, que por sua vez integra a própria ideia ou direito de personalidade.

            A título de informação, o voto divergente do Ministro Edson Fachin (acompanhado pelos Ministros Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Carmen Lúcia) se embasou em parecer da Procuradoria Geral da República segundo o qual o direito à moradia apresenta dois aspectos: o negativo (segundo o qual não pode uma pessoa ser privada de moradia digna em razão de ato estatal ou de outros particulares) e o positivo (segundo o qual o Estado é obrigado a tomar medidas adequadas para a proteção e garantia de um patrimônio mínimo ao indivíduo); assim sendo, permitir a penhora do bem de família do fiador em Contrato de locação comercial seria abrir mão destas garantias, o que não seria necessário uma vez que existiriam outros meios de se resguardar os princípios da autonomia contratual e da livre iniciativa que não fossem tão gravosos ao fiador.

            Sabe-se que é bastante difícil resumir toda a complexidade do debate e dos temas abordados nas poucas linhas deste espaço, por isso mesmo recomenda-se ao leitor interessado em se aprofundar mais sobre o assunto que acesse o portal do STF[1] para a leitura integral dos votos. Contudo, dada a fé deste autor na Advocacia como prestação de serviços à sociedade e neste espaço de publicação como canal de comunicação para com o cidadão comum, é imprescindível que se aproveite este texto para abordar o aspecto prático decorrente dos debates resumidos acima, qual seja, o reconhecimento de que a autonomia dos indivíduos deve realmente ganhar força, posto que não é cabível a figura do “Estado-babá”, aquele que precisa atuar sobre absolutamente todas as atitudes dos seus cidadãos.  Por outro lado, ganha ainda mais força e importância a figura do Advogado Consultivo, de modo que este possa demonstrar a quem pretenda ser fiador nos Contratos de locação todas as vantagens mas também os riscos envolvidos para quem assume tais obrigações, de modo que não se assuma deveres demasiadamente onerosos sem necessidade e, concomitantemente, sem que se prejudique os direitos de eventuais credores afetados pela obrigação em questão. Trata-se de situação na qual o Direito assume sua essencial função de pacificador social, visando o pleno entendimento entre os envolvidos e a diminuição dos conflitos.


[1] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6087183, acesso em 25/03/2022.