Welson Matos
Desde o início da vigência do atual – e já nem tão novo – Código de Processo Civil, a Ação de Produção Antecipada de Provas, procedimento de Jurisdição Voluntária previso nos artigos 381 a 383 do atual diploma processual, foi alvo de discussões que, no mais das vezes, sempre acompanham as inovações ou alterações legislativas.
Nesse sentido, referidas discussões transitaram desde a alteração de sua natureza, que no Código de Processo Civil de 1973 era de Ação Cautelar e na legislação atualmente vigente ganhou ares de Ação Autônoma, até mesmo ao alcance de sua efetiva aplicabilidade, eis que, enquanto o código anterior limitava seu objeto – “[…] interrogatório da parte, inquirição de testemunhas e exame pericial.” art. 846, CPC/1973 –, condicionada ainda à demonstração de urgência e risco de perecimento ou à impossibilidade de oportuna produção da prova pretendida, o Novo Código de Processo Civil cuidou de não apenas retirar a anterior limitação quanto ao objeto das provas que se busca antecipar, mas também de restringir o requisito da urgência tão somente para o inciso I do art. 381 anteriormente mencionado.
Tais pontos, então, restaram exaustivamente debatidos no decorrer do tempo, possibilitando o amadurecimento do então remodelado instituto.
Porém, dentre as polêmicas instauradas, houve uma que, longe de ser pacificada com o tempo, demandou detida análise por parte dos mais diversos tribunais pátrios e, recentemente, deflagrou importante decisão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça.
Isso porque, nos termos do art. 382, §4º do NCPC, no então procedimento autônomo de Produção Antecipada de Provas seria admissível defesa ou recurso: “Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário.”
A disposição legal, como estabelecida, em que pese tenha recebido já de início críticas, foi alvo de decisões judiciais das mais diversas, ora acolhendo integralmente o texto legal, ora caminhando em sentido diverso do quanto legislado, embora, como já alertava grande parte dos doutrinadores nacionais, em harmonia com garantias constitucionalmente estabelecidas – Contraditório, Ampla Defesa e, desse modo, o Devido Processo Legal (art. 5º, incisos LIV e LV, Constituição Federal).
Neste ponto, é sobremaneira importante relembrar que o Devido Processo Legal, constitucionalmente estabelecido, mostra-se fundamento basilar do Estado Democrático de Direito; razão pela qual, ao estabelecer os parâmetros objetivos para a efetivação da Garantia conferida, o texto constitucional cuidou de expressamente estabelecer: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LIV).
E o que se viu, na prática, foram intensas discussões diante de situações que, de fato, colocavam em dúvida, diante da determinação processual expressa, não apenas o alcance das Garantias Constitucionais mencionadas – Devido Processo Legal, Contraditório e Ampla Defesa –, mas também a aplicabilidade destas.
Nesse cenário, surgiu então a decisão recentemente proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em 07 de março de 2023, no julgamento do Recurso Especial nº 2.037.088/SP, sob a condução do Ilustre Ministro Relator Marco Aurélio Bellizze.
Assim é que, no julgamento do Especial acima trazido, entendeu a Terceira Turma da Corte Superior que a regra em análise – §4º do art. 382 do CPC – “não comporta interpretação meramente literal, sob pena de se incorrer em grave ofensa aos princípios do contraditório, ampla defesa, da isonomia e do devido processo legal”, reformando o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na qual restara mantida a interpretação literal da norma em comento.
Asseverou ainda o Ministro Relator em seu voto que “o proceder adotado pelas instâncias ordinárias desbordou por completo do processo civil constitucional, com expressiva (e inadmissível) vulneração aos princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia e do devido processo legal.”
Ainda nessa linha, o voto condutor, embora não tenha o Recurso Especial tramitado pela sistemática dos Recursos Repetitivos, jogou importante luz sobre a intepretação a ser empreendida quando da análise de casos análogos, notadamente pelo aspecto de que, como trazido pelo Ilustre Ministro, “Eventual restrição legal a respeito do exercício do direito de defesa da parte não pode, de maneira alguma, conduzir à intepretação que elimine, por completo, o contraditório – como se deu na hipótese dos autos”.
Também nesse aspecto, a decisão proferida alinha-se ao já citado entendimento doutrinário pátrio, como bem se observa da lição de Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini:
O art. 382, § 4º, estabelece que “não se admitirá defesa” no processo de produção de provas. Tal dispositivo exige interpretação que salve da inconstitucionalidade (CF/1988), art. 5º, XXXVI, LIV e LV).
Não há dúvidas de que o juiz detém poder para, mesmo de ofício, controlar (i) defeitos processuais (ii) ausência dos pressupostos da antecipação probatória e (iii) a admissibilidade e validade da prova.
Logo, o requerido tem o direito de provocar decisão do juiz a respeito desses temas.
A suposta proibição de defesa deve ser compreendida apenas como (a) ausência de uma via específica para formulação de contestação e (b) não cabimento de discussão sobre o mérito da pretensão (ou defesa) para a qual a prova pode servir no futuro.
(in Curso Avançado de Processo Civil. Volume 2: Cognição Jurisdicional (Processo Comum de Conhecimento e Tutela Provisória). 20ª Edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 390).
Ainda, corrobora Cássio Scarpinella Bueno:
[…] O dispositivo, para não atritar com os princípios do contraditório e da ampla defesa, componentes do modelo constitucional do direito processual civil, deve ser interpretado no sentido de que o que está proscrito do procedimento são as discussões relativas à avaliação da prova, que serão feitas a posteriori. Do mesmo modo que não há como subtrair do magistrado o dever de agir, ainda que oficiosamente, quanto à regularidade do processo e da colheita da prova, não é dado impedir que o réu se manifeste em idêntico sentido.
(in Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Procedimento Comum, Processos nos Tribunais e Recursos. Volume 2. 9ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2020. p. 237)
Diante disso, não é demais relembrar que, em que pese seja o Direito ciência em constante mutação, tal não pode implicar que direitos e garantias a duras penas conquistados sejam sumariamente suprimidos, à revelia do quanto consagrado na Carta Constitucional.