A PROTEÇÃO DAS PATENTES EM PRODUTOS FARMACÊUTICOS COMO MANEIRA DE PROMOVER O ACESSO À SAÚDE (UM BREVE PONTO SOBRE A FALÁCIA DE QUE “SE DEVE ESCOLHER ENTRE O DINHEIRO OU A VIDA”).

Por Luís Toscano

Que o Brasil (e, de certa forma, o mundo) tem sido tomado por uma nova onda de radicalismos políticos já não é novidade. Em tempos em que imperam as diversas redes sociais e os algoritmos que lhes compõem, predominam também verdadeiras “bolhas” de pessoas que pensam de maneira mais ou menos semelhantes (promovidas pelos próprios algoritmos anteriormente mencionados) e que, tristemente, têm abdicado do debate e da convivência com ideias divergentes daquelas que já têm arraigadas, tornando a Sociedade de hoje em dia um verdadeiro barril de pólvora que parece prestes a explodir na próxima discussão, seja ela sobre intervenções militares de potências bélicas globais, seja sobre qual o prato que se comerá no almoço. Em se sabendo, contudo, que valores como a liberdade em sentido amplo, bem como a de expressão e de pensamento, o respeito às diferenças e o combate à discriminação e à exclusão de parcelas da População são consagrados pela Constituição Federal, temos uma linha muito tênue entre o que é tolerância à divergência e o que se apresenta como atentado ao Estado Democrático de Direito.

            Tristemente, é possível constatar que esta prejudicial polarização alcançou também debates e ações que deveriam ser eminentemente técnico-científicos, de sorte que é muito provável que os nefastos efeitos que a Pandemia de COVID-19 causou (e ainda vem causando) ao país[1] tivessem sido minimizados se profissionais técnicos pudessem debater e sugerir medidas sem serem taxados de conspiracionistas ou negacionistas, e sem ter eventuais argumentos invalidados sob o simplório argumento (se é que assim pode ser chamado) de estarem mais à esquerda ou à direita do espectro político. Este exemplo é o mais claro do fenômeno apontado, contudo outro caso chama a atenção: em protestos recentes contra o Presidente da República, mormente naqueles de grupos considerados de Esquerda, via-se cartazes no sentido de que “devia-se parar de priorizar o dinheiro e se valorizar a vida humana”, sugerindo para isso a quebra de patentes de fármacos em atendimento à saúde pública.

            Neste ponto é imprescindível ressaltar que este autor concorda que a saúde humana é prioridade inegável e deveria ser garantida ao máximo de pessoas possível[2], contudo, de maneira sustentável e que permitisse a manutenção da saúde econômica do País. Quanto a este ponto, muitos tentam enquadrar as duas matérias em uma dialética proveniente do pensamento marxista que, na prática, se demonstra descolada da realidade. Veja-se que a própria Constituição Federal traz disposições como as que constam dos arts. 3º, II; 170, II; e de forma especial, o inciso XXIX do artigo 5º[3]. Da leitura dos referidos dispositivos Constitucionais é possível concluir que argumentar a favor de uma quebra desregulada de patentes de fármacos sob o pretexto de atender à saúde pública abre precedentes para um desregramento que pode acarretar grave inconstitucionalidade por meio da violação da Ordem Econômica vigente, gerando grandes conflitos sociais que, por sua vez, ameaçam o Estado Democrático de Direito. Fica claro, portanto, que mais que ser uma Constituição voltada “aos interesses da Direita ou da Esquerda Partidária”, a Carta Cidadã brasileira se presta à busca do equilíbrio e vedação aos extremos, para assim buscar a garantia do exercício da cidadania por parte dos Brasileiros.

            Com estas considerações em mente, no último dia 2 de setembro de 2021 foi sancionada a Lei nº 14.200, que trouxe modificações à Lei de Propriedade Industrial – LPI (Lei nº 9.279/1996), mais especificamente em relação à licença compulsória de patentes e pedidos de patentes em casos de declaração de emergência nacional ou internacional, ou de interesse público, ou ainda de reconhecimento de estado de calamidade pública em âmbito nacional. É interessante ressaltar que com esta nova Lei, a nova redação da LPI traz previsão explícita de que uma vez ocorrendo a licença compulsória (ou seja, a quebra temporária da patente por determinação das autoridades competentes) para atendimento às necessidades da saúde pública, o detentor da patente faz jus a remuneração, conforme as regras estabelecidas nos parágrafos de 12 a 14 do novo artigo 71 da Lei nº 9.279/1996.

            Chama a atenção também que alguns dos dispositivos constantes da redação original da Lei foram vetados (ao meu ver, de maneira correta) pela Presidência da República. Neste sentido, tem-se que os referidos vetos se embasaram justamente na violação ao interesse público por causar desordem ao sistema patentário nacional e por representar violação do know-how de titularidade exclusiva das empresas, dentre outros (art. 2º do Projeto de Lei, que alterava os parágrafos 8º a 10 do art. 71 da LPI); na violação ao devido processo administrativo, por meio de proposta de um “by-pass” por meio do qual a quebra compulsória da patente poderia se dar por Lei, dispensando o ato de ofício pela Presidência da República (que se embasa no caput do art. 71 da LPI), o que inclusive prejudicaria a definição dos termos de remuneração do titular da patente (art. 2º do Projeto de Lei, que alterava o parágrafo 17 do artigo 71 da LPI).

            A Nova redação da LPI, portanto, traz inovações positivas ao resguardar – minimamente – os direitos do titular de patente que sofra a licença compulsória, ao mesmo tempo em que busca atender aos anseios sociais diante de situações problemáticas tais quais as que vêm se apresentando na aparentemente infindável pandemia de COVID-19. E justamente por isso tem o condão de tornar a própria atividade de inovação e produção de conhecimento científico mais sustentável e viável.

            É importante estar sempre atento a propostas populistas que tantas vezes são vendidas como soluções fáceis para problemas complexos, apenas para se mostrar posteriormente como uma faceta de demagogia maquiada de boas intenções. Inegavelmente o desenvolvimento de novas técnicas, tecnologias e produtos, ou ainda o estudo de novos fármacos e seus efeitos em humanos e ação no combate às moléstias que afligem a humanidade demanda vultosos investimentos, que podem ser visualizados de modo mais claro ao se compreender os custos de formação e especialização de pesquisadores, equipamentos laboratoriais, adequação e auditoria em relação a regulamentações sanitárias e tantos outros. 

Pressupor que aqueles que realizam tamanhos investimentos não merecem o retorno por eles é tão prejudicial quanto privar o povo dos avanços científicos obtidos. Aliás, no fim das contas o resultado acaba por ser este mesmo, já que a ausência de incentivos e contrapartidas tende a gerar estagnação e até mesmo retrocesso, privando quem mais precisa destas novidades em prol de demagogia barata.


[1] Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, acessíveis em https://covid19.who.int/ , o Brasil é, em 23/09/2021, o segundo país com mais mortes pela doença, e o terceiro em casos de COVID no mundo. 

[2] Note-se que de modo realista é muito difícil falar de “saúde universal”, à qual absolutamente todos tenham acesso, o que inclusive reconhecido pelo Direito por meio do chamado princípio da reserva do possível, que serve como contraponto ao princípio do mínimo existencial. Em suma os dois princípios se complementam na afirmação de que deve ser garantido a todos pelo menos o básico para uma existência digna, contudo se reconhece também a dificuldade de alcançar todos os cidadãos em território tão extenso quanto o brasileiro, ou ainda de atender plenamente os anseios de uma população do tamanho e com as necessidades da nossa. Trata-se, basicamente, de buscar atender o básico das necessidades do máximo de pessoas possível, ao invés de atender necessidades mais complexas de poucos e deixar porção ainda maior da população desamparada

[3]  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;